Me deitei pensando nas tarefas do dia que estava chegando de leve.
Perdi o sono.
A primeira segunda-feira do ano teria consulta médica. Eu só tenho um médico e um dentista como referências de fidelidade absoluta. Nem terapeutas, nem professores resistiram aos anos e àquilo que mais parece uma faxina em que o critério para ser preservado ou reciclado é: isso eu preciso. Pode soar como frieza na alma, mas não é. É uma questão de empatia e de identidade.
O dentista vem da infância. Uma relação de medo e desgosto que ganhou forma de respeito profissional e admiração pelos cabelos grisalhos que se mantêm fieis à cabeça, ainda que ralos, e constantes na paisagem do bairro onde cresci.
Com o médico perdi a barreira do uniforme branco na última consulta há uns 4 anos. Foi uma tarde estranha. Não entendi até hoje aquela brecha que escapou da conversa técnica e ganhou ares amistosos: ele falou mais que eu. E dele.
Por conta de alguma fenda que se abriu na conversa, aquele homem foi falando dos seus problemas mais pessoais e mais torturantes, das suas angústias de homem magoado e culpado. E havia tanta confidência e cumplicidade naquela fala que só os mais de 10 anos de idas e vindas minhas naquele consultório permitiriam isso.
Aquele ser corpulento saiu do meu imaginário com 20 anos e ressurgiu com seus 50 anos, repensando seu lugar, os sentimentos que precisava recomeçar a sentir e tantos outros que deveria simplesmente assumir que não existiam mais. Parecia um confessionário em que eu ouvia seus pecados sem cura, mas tão humanos quanto a súplica de perdão.
E eu buscava palavras banais para um consolo que não aconteceria. Meio atordoada por vê-lo tão infeliz e não imaginar que ele sofria tanto…
Saí do consultório sem o esquadro que emoldurava as imagens das minhas lembranças de menina e sem a ideia de homem que eu tinha dele.
E as minhas confidências esperadas ficaram pequenas e desprezíveis em comparação às dele. Evaporaram no calor dos relatos.
Ele me falava das conversas com seu terapeuta, das crises e de necessidades e eu tentava me enxergar, intimamente, num lugar que nunca ocupei: o de uma amiga que aquele homem de olhar técnico, mas sempre amigável.
Depois desta conversa permeada de informações de diagnóstico médico, depois destes longos e instáveis 50 minutos de desabafo, demorei 4 anos para retornar ao mesmo lugar. Por que? Não sei. Ou sei… Pela razão mais tola pela qual se cancela de tempos em tempos um encontro inevitável e não muito agradável, afinal é uma consulta médica anyway.
Tentei mudar de médico porque sempre acho que prestação de serviço não combina com proximidade emocional. Foi em vão. Eu pari meu único filho com ele e o vínculo criado durante a gestação do meu único filho, o vínculo vivenciado na mesa do parto é irreversível. Há uma cumplicidade e uma confiança que vão muito além da mera assistência médica.
Nelson Rodrigues usava da imagem da mulher de família tradicional para criar suas frases polêmicas típicas sobre suas idas ao ginecologista. Como um bom machista, acha que daria conta de imaginar o que pode haver entre a confidência de uma mulher e um médico. Transferia seus delírios para a cena cuja essência jamais seria capaz de traduzir, se há.
Como um bom homem arrogante nas palavras e pensamento, Nelson Rodrigues me é tão caricato quanto as imagens que cria.
Ali, entre a paciente e o médico, o que acontecia era fruto de lealdade e confidencias. Já fiz tantas que ele se deu ao direito de transformar o monólogo da consulta em diálogo dramático, no sentido grego.
Por conta do meu atraso, saí sem pensar em levar um livro para as habituais salas de espera. Transei uma conversa ligeira com uma paciente grávida e com uma outra, recém chegada ao dito paraíso… Todas falando do calor e das visões da maternidade. O tempo correu e em 10 minutos já fui chamada.
Neste período que passou sem que eu retornasse, mudanças bruscas na vida… Tínhamos frustrações e marcas, agora, mais próximas… Assim como a esperança de um alívio num tempo futuro.
Não havia mais ansiedade nem angústia nas frases, nos relatos, nas emoções vividas. Este espaço estava tomado por um certo cansaço produzido por equívocos inevitáveis, pregados nas costas de todo ser que arrisca ouvir seus desejos irreversíveis.
Em compensação, ele ouvia minha fala solidária, sustentada pelos meus equívocos de ex-casada também. Ele mais cansado que eu, ainda se sentindo baleado. Eu, só dando novas versões aos fatos antigos, revisitando algumas passagens e ele constatando: “Desde o princípio eu senti que você tinha que cair fora.”
Dividimos a sensação de que alguns processos na vida exigem quase um coma induzido para que a vida renasça com força.
Não se sabe como se dá restabelecimento do doente. Nunca se sabe se o retorno exigirá uma adaptação acompanhada ou só fisioterapia. Mas, ali naquela sala, hoje à tarde, eu e ele sabíamos que quem falava de dores, desafetos, recuperação e expectativa emocional de vida eram o homem e a mulher, ainda que nossos lugares estivessem totalmente preservados. Havia uma tangente que atravessava os dois relatos.
Havia um mar de vida correndo no diálogo de consultório que Nelson Rodrigues não seria capaz de se dar conta por ser quadrado no olhar: ele via a distorção e escrevia escarros de ficção. A realidade é bem mais plural que a literatura.
Talvez houvesse mais de Clarice Lispector naquilo tudo.
E saí de lá pensando num filme ou numa crônica que ninguém soube escrever até agora… Posto que é vida.