Oração com autoria

Padrão

Eu não tenho religião e menos ainda simpatizo com as instituições fundadas naquilo que, oficiosamente, estipula-se que seja fé – mística.

No entanto sempre tive um grande incômodo da época do meu catecismo: por que todo mundo tem que repetir as mesmas orações se seus desejos são pessoais e intransferíveis? O que dizer de único às entidades de suas crenças? Por que deveríamos recorrer a estes textos estranhos e mal escritos que mais parecem um emaranhado de palavras esvaziadas de sentido e que não transmitem uma imagem coerente na minha cabeça?

Mais uma madrugada em claro. E minha insonia me presenteia com certas ideias inúteis, que só servem para torná-la ainda mais sofrida: por que não criar uma forma de oração, que seria a minha? O que eu gostaria de repetir a uma entidade à qual eu seria íntima e confidente nas minhas horas de apelo solitário e de devoção?

Então rascunhei uma mentalmente e tive que repeti-la inúmeras vezes para não esquecer ao amanhecer o dia…

Se alguém quiser fazer uso, o faça apenas se ela lhe for de fato verdadeira. Do contrário, continue seguindo o prontuário dos textos sagrados… Fará melhor serviço.

“Nossa Maria herdeira das graças, que os deuses estejam sempre convosco. Benditas somos nós, mulheres, parindo o fruto dos nossos ventres, nossas crianças em corpo, na saúde e na fé. Salve, Maria, filha, mãe e mulher dos deuses, olhai por nós, imperfeitos. Remediai nossas fraquezas assim como renasce nosso dever de curar os enfermos. Hoje, agora, outrora e sempre. Amém”

Não sei se serei uma usuária desta evocação à figura de Maria, mas é a única figura mística que me atrai, por ser mãe e pelo pouco da história dela que eu conheço.

No entanto, depois de escrevê-la e de pronunciá-la algumas vezes me senti mais liberta dos ditames dogmáticos que não me dizem quase nada. Pelo menos me senti mais sincera com as entidades que me foram herdadas. Remaquiei Maria com as cores que meus olhos vêem o mundo feminino da mãe, da combatente diária, da grávida dos milagres da vida. Nunca me senti tão honesta com essa santidade como durante a busca por legitimidade num texto oratório.

O que isto representa, não faço a mínima ideia e não quero “especular” a respeito.

Só sei que, horas depois de ter acordado, alguém me lembrou ser hoje, 06 de janeiro, a data do aniversário de falecimento da minha vó.

Coincidência ou não, não saberei dizer. Sei que ela guardava uma admiração pessoal pela Nossa senhora. Sei também que se passaram 26 anos de morte da minha vó e nenhum dia sequer sem saudade ou uma lembrança sorrateira valsando na cabeça…

Que me desculpe Nelson Rodrigues…

Padrão

Me deitei pensando nas tarefas do dia que estava chegando de leve.

Perdi o sono.

A primeira segunda-feira do ano teria consulta médica. Eu só tenho um médico e um dentista como referências de fidelidade absoluta. Nem terapeutas, nem professores resistiram aos anos e àquilo que mais parece uma faxina em que o critério para ser preservado ou reciclado é: isso eu preciso. Pode soar como frieza na alma, mas não é. É uma questão de empatia e de identidade.

O dentista vem da infância. Uma relação de medo e desgosto que ganhou forma de respeito profissional e admiração pelos cabelos grisalhos que se mantêm fieis à cabeça, ainda que ralos, e constantes na paisagem do bairro onde cresci.

Com o médico perdi a barreira do uniforme branco na última consulta há uns 4 anos. Foi uma tarde estranha. Não entendi até hoje aquela brecha que escapou da conversa técnica e ganhou ares amistosos: ele falou mais que eu. E dele.

Por conta de alguma fenda que se abriu na conversa, aquele homem foi falando dos seus problemas mais pessoais e mais torturantes, das suas angústias de homem magoado e culpado. E havia tanta confidência e cumplicidade naquela fala que só os mais de 10 anos de idas e vindas minhas naquele consultório permitiriam isso.

Aquele ser corpulento saiu do meu imaginário com 20 anos e ressurgiu com seus 50 anos, repensando seu lugar, os sentimentos que precisava recomeçar a sentir e tantos outros que deveria simplesmente assumir que não existiam mais. Parecia um confessionário em que eu ouvia seus pecados sem cura, mas tão humanos quanto a súplica de perdão.

E eu buscava palavras banais para um consolo que não aconteceria. Meio atordoada por vê-lo tão infeliz e não imaginar que ele sofria tanto…

Saí do consultório sem o esquadro que emoldurava as imagens das minhas lembranças de menina e sem a ideia de homem que eu tinha dele.

E as minhas confidências esperadas ficaram pequenas e desprezíveis em comparação às dele. Evaporaram no calor dos relatos.

Ele me falava das conversas com seu terapeuta, das crises e de necessidades e eu tentava me enxergar, intimamente, num lugar que nunca ocupei: o de uma amiga que aquele homem de olhar técnico, mas sempre amigável.

Depois desta conversa permeada de informações de diagnóstico médico, depois destes longos e instáveis 50 minutos de desabafo, demorei 4 anos para retornar ao mesmo lugar. Por que? Não sei. Ou sei… Pela razão mais tola pela qual se cancela de tempos em tempos um encontro inevitável e não muito agradável, afinal é uma consulta médica anyway.

Tentei mudar de médico porque sempre acho que prestação de serviço não combina com proximidade emocional. Foi em vão. Eu pari meu único filho com ele e o vínculo criado durante a gestação do meu único filho, o vínculo vivenciado na mesa do parto é irreversível. Há uma cumplicidade e uma confiança que vão muito além da mera assistência médica.

Nelson Rodrigues usava da imagem da mulher de família tradicional para criar suas frases polêmicas típicas sobre suas idas ao ginecologista. Como um bom machista, acha que daria conta de imaginar o que pode haver entre a confidência de uma mulher e um médico. Transferia seus delírios para a cena cuja essência jamais seria capaz de traduzir, se há.

Como um bom homem arrogante nas palavras e pensamento, Nelson Rodrigues me é tão caricato quanto as imagens que cria.

Ali, entre a paciente e o médico, o que acontecia era fruto de lealdade e confidencias. Já fiz tantas que ele se deu ao direito de transformar o monólogo da consulta em diálogo dramático, no sentido grego.

Por conta do meu atraso, saí sem pensar em levar um livro para as habituais salas de espera. Transei uma conversa ligeira com uma paciente grávida e com uma outra, recém chegada ao dito paraíso… Todas falando do calor e das visões da maternidade. O tempo correu e em 10 minutos já fui chamada. 

Neste período que passou sem que eu retornasse, mudanças bruscas na vida…  Tínhamos frustrações e marcas, agora, mais próximas… Assim como a esperança de um alívio num tempo futuro.

Não havia mais ansiedade nem angústia nas frases, nos relatos, nas emoções vividas. Este espaço estava tomado por um certo cansaço produzido por equívocos inevitáveis, pregados nas costas de todo ser que arrisca ouvir seus desejos irreversíveis.

Em compensação, ele ouvia minha fala solidária, sustentada pelos meus equívocos de ex-casada também. Ele mais cansado que eu, ainda se sentindo baleado. Eu, só dando novas versões aos fatos antigos, revisitando algumas passagens e ele constatando: “Desde o princípio eu senti que você tinha que cair fora.”

Dividimos a sensação de que alguns processos na vida exigem quase um coma induzido para que a vida renasça com força.

Não se sabe como se dá restabelecimento do doente. Nunca se sabe se o retorno exigirá uma adaptação acompanhada ou só fisioterapia. Mas, ali naquela sala, hoje à tarde, eu e ele sabíamos que quem falava de dores, desafetos, recuperação e expectativa emocional de vida eram o homem e a mulher, ainda que nossos lugares estivessem totalmente preservados. Havia uma tangente que atravessava os dois relatos.

Havia um mar de vida correndo no diálogo de consultório que Nelson Rodrigues não seria capaz de se dar conta por ser quadrado no olhar: ele via a distorção e escrevia escarros de ficção. A realidade é bem mais plural que a literatura.

Talvez houvesse mais de Clarice Lispector naquilo tudo.

E saí de lá pensando num filme ou numa crônica que ninguém soube escrever até agora… Posto que é vida.

Um porém que me constitui…

Padrão

Eu deveria estar feliz como quase todo mundo diante da certeza concretada em fatos escusos, mas não.

Eu deveria aceitar o inquestionável como tal, mas não.

Eu deveria festejar o veredito timbrado pela justiça sem falhas nem lacunas, mas não.

Eu deveria dormir tranquila depois de me desligar das imagens factuais dos jornais e da televisão, mas não.

Minha respiração deveria acontecer de forma leve e despercebida, mas não. Ela se arrasta de dentro para fora.

Meus olhos deveriam deslizar pelos textos da cobertura do grande jornal, impresso de precisão e retidão. Procuro e não encontro a segunda chance para um porém que faltou, para um ponto de interrogação omitido ou para reticências displicentes.

O tom da inflexão discursiva da unanimidade deveria me convencer também. Porém não cedo a esta evidência corporativa.

Meu olhar emperra numa palavra ou noutra. Meus olhos estacionam na imagem cinematográfica do herói castigado, desmembrado, desumanizado diante dos tiros de flash.

Imagem

Hollywoodianamente a farsa exposta como esquematizada aos milímetros pela mais profunda sordidez humana se desnuda. Em pelos, diante dos olhares contentes e sádicos, nosso presente reluz a sobriedade dos neojusticeiros, mitologicamente dotados de uma verdade sobre-humana, e embaça minhas retinas…

Os heróis agora são eles, até então desconhecidos burocratas da Justiça, travestidos com capas e seu conhecimento técnico, mágico e premunitório: tudo sabem, tudo elucidam. A dúvida é extirpada meticulosamente.

Não há aresta que não tenha sido checada, não há dado que tenha sido negligenciado, não há oração adversativa nesta reza.

E a fé nos neodeuses deveria me confortar, me assegurar da verdade unívoca, me apaziguar o espírito, mas não.

Meu olhar vai congelando… Se nega a ir até a última linha, negando assim a conclusão da narrativa bem costurada.

Todos os olhares flanam pelo cotidiano, todos os ouvidos se regozijam com a convicção do certo: a punição exemplar ou um tipo de curso de moral e cívica televisivo.

Eu deveria ignorar as sutilezas. Eu deveria comungar das alegrias urradas pelas redes…

Eu deveria soltar um riso sonoro de ódio bem nutrido.

Eu deveria  transformar a frustração marinada por anos em histeria coletiva, mas não consigo.

Existe sempre um mas… Me permito um outro porém antes do ponto final.

Eu deveria ter esta sobriedade que todos dizem ter sobre o inequívoco, mas não !

Falta-me anestesia na alma.

Imagem