Homem apaixonado

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Homem apaixonado é o que há…
Poesia que pulsa, vida em métrica. Tenho a impressão de que os homens apanham muito com o malabarismo dos sentimentos.
As mulheres menos talvez, porque sentir é mais feminino na nossa cultura. Nossas barreiras são de outra ordem, nossos pudores outros.
De algum modo a paixão nos aproxima, cria e recria a identidade dos sexos.
É sempre complicado, mas muito prazeroso.O tal “o que será, que será” que atraí e repele corpos, adoça a alma por um instante na existência…

Once upon a time… Como já era de praxe, na segunda de manhã eu voltava pra Campinas de ônibus e, dessa vez, sentei-me ao lado de uma senhorinha das mais simpáticas que já encontrei. Essas de coque bem grisalho. A típica.
Eu não sei porquê, ainda no começo da conversa ela me perguntou se eu tinha namorado na minha cidade.
Contei que havia terminado um namoro de mais de 6 anos havia pouco tempo… e que ainda tinha o ex muito presente, que estava triste demais…

Ela:
– Eu sei que você ainda é muito nova ainda, mas você acha que ele é o homem da sua vida?
Eu:
– Penso que não… Sei que vou conhecer outros.. me apaixonar mais vezes…E que o namoro tinha que acabar um dia.
Ela:
– Pois eu vou contar a minha estória. Eu sou viúva…

Logo pensei que eu teria que aguentar mais um daqueles monólogos intermináveis de estrada. Me deu calafrio.. Mas ela foi mostrando que viria coisa diferente na conversa.
Contou então que, aos 20 anos, era apaixonada por um moço mas que nunca namoraram porque ele gostava da amiga dela.
Quando percebeu que a disputa era inglória, foi logo se engraçando com outro rapaz para “se vingar”.. mal sabia que o inconsciente dela estava salvando-a da infelicidade, e é exatamente para isso que o inconsciente tem que funcionar, oras bolas!
Enfim… antes de se casar ela não conseguiu carregar sozinha aquela frustração ainda “em tratamento” e disse:
– Vou me casar com você para ver se meu coração aprende a amar de novo.
E o noivo, feliz da vida, respondeu:
– Eu o ensinarei como fazer…

Paramos no posto da estrada.. Ela foi para um lado, eu para outro. Era como se eu tivesse sido obrigada a parar a leitura de um conto… Durante os 15 minutos da parada fiquei pensando em vários enredos para a estória.. Mas nenhum chegou perto do quadro que ela foi pintando para mim, de volta à viagem.
Sentei-me e mesmo antes do motorista dar a partida retomei a estória:
– Por quanto tempo a senhora foi casada com ele?
– Por 52 anos.. Tenho 75… a maior e a melhor parte da minha vida foi vivida com ele…
Eu conseguia ouvir com calma, pinçando os detalhes que ela me narrava.
Uma estória de amor não existe sem os detalhes.
– Pois então, meu marido a cada dia me convencia um pouco mais de que eu aprenderia a amá-lo. Amá-lo de um amor sem volta, entende? Mas no começo eu pensava muito no outro ainda… Ele era muito bonito. Meu marido não.
– Sei… mas ele estava apaixonado. O outro não…
– Ele me dava pistas diárias de que ele me conquistaria pelo amor que tinha.
Ele colocava as crianças para dormir e ia tocar piano enquanto eu preparava o nosso jantar… Depois namorávamos… Eu fui me deixando conquistar.
Fomos envelhecendo e a necessidade de cuidado se misturou ao afeto.. ele escrevia bilhetes e deixava na cozinha de manhã. Quase todo dia. Se estivesse magoado comigo, não escrevia. Eu devia desculpas a ele por alguma razão. Era assim…
Ele acordava bem cedo e preparava o café. Eu acordava com o cheiro que vinha da cozinha, mas quando levantava ele já não estava mais lá.
Ao lado da minha xícara o bilhete… “Minha flor, se sair de casa sozinha tome cuidado com os buracos da calçada. Não vá se machucar. Beijo” Ou então: “Querida, não se sinta sozinha. Meu pensamento virá alcançá-la sempre.”
Eram pequenas surpresas que coloriam meu dia, me deixavam na expectativa do seu retorno.
Ele lia muito e gostava de fazer literatura nesses bilhetes. E eu esperava sempre pelo próximo, pelo bilhete no dia seguinte.. Hoje eu os tenho todos guardados na caixa de papelão que embrulhava meu vestido de noiva. São muitos..

Eu, ouvindo aquilo tudo e muito machucada pelo fim do namoro, queria acreditar piamente num caso de “esclerose criativa” ou algo do gênero. Eu me negava a aceitar que haveria uma estória dessas e mais: sendo narrada pela protagonista, para mim naquela situação de esfacelamento sentimental em que eu me encontrava!
Eu me comovia… as imagens surgiam e dançavam valsa prá mim…

– Depois de aposentado os bilhetes foram diminuindo, naturalmente… mas a atenção foi aumentando. Sempre muito cuidadoso, não queria me ver doente… Isso o preocupava demais. Tinha medo que eu morresse antes…

Eu não quis saber do que ele morreu e nem como. Acho que ela também não quis borrar de natureza morta aquele quadro do Renoir, todo iluminado. Ela contou apenas que o marido antes de morrer, no hospital, pediu a um filho que comprasse um bouquet de flores e que escrevesse um bilhete. O filho percebeu o gesto de despedida. O pai ditou a ele a mensagem.

Depois do anúncio do falecimento, então, o filho entregou as flores com o bilhete à mãe, cumprindo a promessa.
Ela, muito sentida, mal dava conta de abri-lo. Vagareza nas mãos e lágrimas de dor… Dor pelo último bilhete.

No ônibus, ela tira um papel da bolsinha de mão, abre e lê:

“Amada …, eu me vou. E você, cuide-se. Continue linda e cheia de vida para que as flores possam desabrochar, como fez comigo durante todos os nossos dias. Meu pensamento virá alcançá-la sempre.”

Eu e ela chorando baixinho… o ônibus em silêncio.
Logo depois chegamos e foi difícil me despedir daquela mulher. Foi uma outra espécie de morte aquele instante. Para ambas.

Naquela época eu era monitora de um curso…
Cheguei na faculdade meio zonza da viagem e de tudo. Fui para a cantina tomar um café.
Logo que me sentei apareceu o Javier (/ravier/… argentino), um aluno do grupo que eu monitorava…
Aquele menino lindo de olhos verdes bem redondos e cabelo negro vem e me dá um presente…
Carlos Drummond: Amar se aprende amando. E uma dedicatória…
Eu emudeci. Ele não deve ter entendido nada. Viu meus olhos avermelhados se encherem…
Eu não expliquei. Só pude agradecer.

Des choses qui m’arrivent…

Carrego tudo isso em mim… e tantas e quantas lições de amar.
Se eu aprendi? Isso eu já não sei…

Uma resposta »

  1. como me disse a própria autora, tarde dessas de ventilador no talo e café na guela, esse é um post “filho da puta”…

    é uma história simples e bonita demais, sobre uma noção de amor muita específica, uma noção de amor não idealizada, muito concreta, muito cotidiana, muito humana, muito interacional… post filho da puta!!!
    e digo a ela, sobre culpas, responsabilidades, retoques, reescritas, mel e afeto, que:

    “o poeta deve compreender que a sua poesia tem culpa pela prosa trivial da vida, e é bom que o homem da vida saiba que a sua falta de exigência e a falta de seriedade das suas questões vitais respondem pela esterilidade da arte”.

    by the way, citaçãozinha de Bakhtin, do texto “Arte e Responsabilidade”, primeiro ensaio escrito pelo jovem Bakhtin, muito jovem… outro textinho filho da puta…

    • por leituras assim que eu continuo essa “filhadaputice” toda… esses posts FDP que mandam na gente.. tiram o sono.. remexem o baú da memória, estreitam laços.. esses são os piores! rss..

  2. Pegue o busão sempre e terá um livro denso para escrever. É democrático e plural. Emocionante até, como acabei de ler.
    Quando morava em Ribeirão e voltava a Minas ouvia histórias de gente que perambulava por causa da cana, de detentos em regime semiaberto, o dia de visita na penitenciária, pessoas que entravam no ônibus aos prantos, ciganos, mudos etc.
    Esta senhora deu dicas muito valiosas. Sabedoria de quem aprendeu o que é amar.

  3. Garimpei um par de expressões bonitas no seu texto: “afeto e mel”, “esclerose criativa”, “borrar de natureza morta aquele quadro de Renoir”… Me permite escrever uma crônica com alguma delas?

  4. Fiquei muito feliz ao saber que essa crônica maravilhosa foi meu primeiro presente.
    Quanto à dúvida final, acho que todos nós somos incapazes de absorver as várias lições de amor que nos são oferecidas diariamente, mas todos, ao menos uma vez na vida, seremos vítimas dos efeitos implacáveis desse sentimento!
    Com todo o meu amor de prima, muito obrigada!

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